Na última quarta-feira (30), na 15ª Conferência Municipal de Saúde, o prefeito de Cuiabá, Abílio Brunini, interrompeu a fala da professora Maria Inês da Silva Barbosa ao ouvi-la pronunciar termos em linguagem neutra, como “todes”, em uma saudação inicial.
A docente, pesquisadora do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e referência em políticas de equidade no Sistema Único de Saúde (SUS), era conferencista sobre o tema “Consolidar o SUS: com a força do povo, participação social e políticas públicas”. Ela falaria sobre as medidas que poderiam orientar o combalido cenário da Saúde na capital mato-grossense.
Brunini ameaçou suspender a conferência, se ela continuasse a utilizar a linguagem neutra. A professora, então, recusou-se a prosseguir. Ao fim e ao cabo, por um capricho do mandatário (ou seria doutrinação ideológica?), Cuiabá e seus munícipes perderam a chance de ouvir e discutir as contribuições que certamente a docente daria, em sintonia com a sua trajetória.
Uma ponderação: o termo “todes” é um neologismo, ainda não reconhecido formalmente no bojo da Língua Portuguesa, cujo objetivo é incluir as pessoas que não se identificam exclusivamente como homens ou mulheres, portanto, não binárias. Por mais que pareça estranho a quem tem a sua identidade de gênero muito bem definida, é aí que muitos indivíduos se encontram, e não demanda muito esforço compreender e respeitar.
Outra ponderação: a Língua e também a linguagem são esferas mutantes, não estanques, pois acompanham as transformações que marcam a vida em sociedade. Do mesmo modo que novas palavras vão surgindo, sendo ou não incorporadas ao dicionário oficial, outras vão desaparecendo do nosso uso, ainda que reconhecidas pelo vernáculo. Há que se reconhecer também que a fala e a escrita podem trazer erros ortográficos e de concordância, por exemplo, os quais o prefeito ou qualquer outra pessoa não está dispensado de cometer, e nem por isso deve ser censurado.
Uma última ponderação: o idioma e as diversas maneiras de manifestá-lo, na forma escrita ou oral, configuram-se em território de poder, a ponto de um grupo de pessoas defender o uso de um termo, enquanto outra vertente atua em prol da proibição.
Um dia depois do episódio, o vereador Rafael Ranalli (PL) protocolou projeto de lei que proíbe a utilização da linguagem neutra em documentos oficiais da administração pública e nas escolas do município, conforme apuração de Maurício Businari, em matéria publicada hoje (2), no UOL.
Ninguém é obrigado a utilizar uma palavra da qual não gosta, razão pela qual forçar alguém a não usá-la soa como doutrinação, autoritarismo, ainda mais quando a ação não é causadora de prejuízos a uma pessoa ou grupo. Convenhamos, eis aí uma postura que não coaduna, por óbvio, com a liberdade e a democracia.
Se a ação parte de uma pessoa que ocupa um cargo público, a contradição é ainda mais gritante. Como é sabido, um mandatário não é dono da cidade, do estado ou do país. É apenas alguém que foi eleito para um cargo representativo, por quatro anos, devendo, portanto, máximo respeito à sociedade, incluindo quem não pensa como ele, pois não representa apenas quem nele votou.
Certos impulsos antidemocráticos me levam quase sempre a Chico Buarque: “O que não tem conserto, nem nunca terá…O que não tem decência, nem nunca terá… O que não tem governo, nem nunca terá; o que não tem vergonha, nem nunca terá; o que não tem juízo”.
Uma proposta: quem não deseja usar a linguagem neutra, basta não utilizá-la, resguardando aos que não se incomodam o direito de saudar uma plateia de outra forma. Pode parecer inútil a reflexão. Mas ela é necessária, nem que a sua única finalidade seja demarcar uma resistência, para que a sanha autoritária tenha limites.
Thiago Cury Luiz
Jornalista e Doutor em Educação
Docente e pesquisador da Universidade Federal de Mato Grosso