Neste final de semana o palco do Teatro da Universidade Federal de Mato Grosso se transformará num turbilhão de cores e movimentos. Ao lado da elegância e vigor da Cia. Paulista de Dança, uma das principais companhias do país, o Sesi Mato Grosso e sua Orquestra Sesi apresentam seu maior desafio artístico, a montagem do Balé “Dom Quixote”. A obra é algo que vai muito além da música e da dança. É um convite ao sonho, ao questionamento, ao desafio dos limites do real e, principalmente, ao reconhecimento de que a arte, num país tão desigual, ainda é um privilégio para poucos, quando deveria ser um direito de todos.
O balé Dom Quixote, inspirado no clássico de Cervantes, irá nos interpelar: será que o Cavaleiro da Triste Figura é assim tão anacrônico em 2025?
Cervantes nos apresentou Alonso Quijano, um fidalgo que, imerso em livros e delírios, embarca em jornadas onde moinhos se transformam em gigantes e camponesas em damas inalcançáveis. No balé, essa história é reinventada com a vibrante música do compositor austríaco Ludwig Minkus, em um cenário efervescente de uma Espanha popular. Lá, a paixão de Kitri e Basílio desafia as imposições sociais. Eles lutam por amor e liberdade, dramas tão antigos quanto atuais.
Mas e se os gigantes de hoje não tiverem hélices de vento, mas rostos de indiferença, de desigualdade, de preconceito? E se a loucura de Dom Quixote for, na verdade, uma lucidez corajosa diante de um mundo que insiste em negar justiça, sensibilidade e cultura? Um mundo onde a fome, o racismo e o preconceito seguem impedindo milhões de sonhar, enquanto o acesso à arte e ao conhecimento ainda é cercado por barreiras sociais e econômicas?
Existem “Dom Quixotes” caminhando entre nós. São aqueles que ousam sonhar com um futuro mais justo, mesmo quando os “moinhos” da desigualdade, da intolerância e da descrença parecem intransponíveis. Os moinhos de vento de Dom Quixote podem parecer delírio, mas enfrentá-los é um ato de coragem — e, mais do que isso, um ato de sanidade. Porque aceitar o inaceitável, isso sim, é loucura.
E Sancho Pança? Esse amigo leal, com os pés fincados no chão e a barriga sempre a lembrar das necessidades concretas. Quantos “Sanchos” precisamos hoje? Gente capaz de equilibrar o sonho e a realidade, de transformar ideais em ações, sem perder a ternura nem o senso de justiça. Assim como a música e a dança se constroem no coletivo, nossos sonhos só ganham força quando se amparam em parcerias, solidariedade e ação conjunta.
Cuiabá recebe, com este espetáculo, um verdadeiro presente. É uma honra e um privilégio para nossa cidade ver músicos e bailarinos unindo talentos em um acontecimento cultural raro, que celebra a força da arte como resistência e esperança. Em tempos em que a cultura é vista por muitos como algo supérfluo, erguer a música e a dança como bandeiras de liberdade é, também, uma batalha contra os moinhos do descaso.
Quando a cortina abrir e os acordes de Minkus ecoarem, não estaremos apenas assistindo a um espetáculo. Estaremos diante de um espelho – um espelho que pode refletir os nossos próprios gigantes, as nossas paixões, as nossas lutas, a nossa capacidade de sonhar. Porque Dom Quixote não vive apenas nas páginas de Cervantes ou nas coreografias do balé. Ele persiste em cada um que se recusa a aceitar o mundo como ele é — desigual, excludente, hostil aos sonhos — e que enfrenta a aridez do cotidiano com poesia, com coragem, com esperança. Lutar por justiça, sonhar com liberdade, defender o acesso à cultura e à dignidade. Isso nunca foi anacrônico. É, e sempre será, nossa maior sanidade.
Talvez o maior legado de Dom Quixote — e da arte — seja nos lembrar que nunca é anacrônico lutar por justiça, sonhar com liberdade e defender, contra todos os ventos, a dança da esperança.
Fabricio Carvalho é Maestro e membro da Academia Mato-grossense de Letras @maestrofabriciocarvalho
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